Criado pelo compositor e depois diretor de orquestra José Asunción Flores em assunção, em 1925, o gênero musical intitulado guarânia ia levar um certo tempo para popularizar-se no próprio país de origem, o Paraguai. De fato, tendo surgido sob a forma de música revestida de certo aparato instrumental – primeiro para a execução por banda militar, depois por orquestra convencional, de formação basicamente européia, a guarânia chegou inicialmente (como bem observa o maestro Maurício Cardozo Ocampo) a caminhar musicalmente na direção do poema sinfônico, o que excluía de saída à possibilidade de seu cultivo pelos músicos do povo. A beleza das melodias dolentes das guarânias de Asunción Flores e de seus primeiros seguidores, no entanto, associada ao lirismo nostálgico das letras dos poetas logo chamados a contribuir com seus versos para o novo gênero de canção, acabariam depois de certo tempo despertando o interesse dos músicos ligados a gêneros mais populares, como a polca paraguaia. E, assim, ao despontar da década de 1930, a guarânia pode, afinal, descer aos violões e harpas índias do povo paraguaio e se democratizar, transformando-se a partir de então em gênero de música realmente nacional.
No Brasil, esse período correspondia, exatamente, ao do aparecimento de um mercado para o novo tipo de música que, sob a designação de música caipira (logo depois mais corretamente como música sertaneja), vinha anunciar a incorporação pela gente das cidades, de sons e gêneros musicais até então circunscritos ao gosto e as peculiaridades da vida das camadas rurais do centro-sul do País. Na verdade, o que a aceitação dos primeiros discos de música da área da moda-de-viola significava (as primeiras gravações de “música caipira” foram feitas em São Paulo a partir de 1929, por iniciativa do escritor Cornélio Pires) era, nada mais, nada menos, do que um novo fenômeno de interação campo-cidade, resultante do rápido avanço da área industrial sobre vastas zonas de vida tradicionalmente agropastoril. Atraídas para as cidades pelas oportunidades de trabalho em atividades industriais ou urbanas, as novas camadas de antigos caipiras e seus descendentes iam formar, dos fins da primeira guerra mundial em diante, principalmente em São Paulo, o público destinado a consumir os recentemente lançados gêneros de música que, embora criados pó espertos profissionais ligados ao disco e ao rádio, traduziam, pela busca do clima “sertanejo”, o gosto e as expectativas da gente do campo.
A comprovação de fato tornou-se clara, quando, animada pelo sucesso das gravações de modas-de-viola, toadas de cateretê, canas verdes e cururus pela Turma caipira Cornélio Pires, na Colúmbia, a gravadora Victor não apenas se apressa a criar também em meados de 1929 a sua Turma caipira Victor, com base na dupla Lourenço & Olegário, mas já em maio de 1930 aparece lançando discos com a dupla Zico Dias e Ferrinho (Antonio da Silva) – a mesma que no ano anterior fora trazida de Tietê por Cornélio Pires, ainda como amadora, para sua gravações “regionais”. Aliás, a resposta comercial do mercado comprador de discos deve ter sido de tal ordem que, a partir da virada das décadas de 1920 para 1930, a terceira grande gravadora extrangeira instalada no Brasil, a Odeon, adere também a música sertaneja, contratando para seus quadros outro artista lançado em disco por Cornélio Pires em 1929 com pseudônimo de Bico Doce: o filho de imigrantes espanhóis natural de Botucatu, Raul Montes Torres. Sob o nome de Raul Torres, esse artista de múltiplos talentos – a quem caberia um papel importante na introdução da guarânia no Brasil – ia iniciar então sua longa carreira de divulgador de gêneros rurais para a gente das cidades, permanecendo até 1937 na Odeon/Parlophon (época das duplas com Joaquim Vermelho e João pacífico); de 1937 à 1942 na Victor (formando dupla com seu sobrinho Antenor Serra, o Serrinha); a partir de 1942, ora na Odeon , ora na Continental (sucessora da Colúmbia), ainda em dupla com Serrinha e, finalmente, de 1944 em diante na Continental, sempre ao lado de seu mais bem sucedido e mais constante parceiro – João Batista Pinto, o Florêncio (Barretos/SP – 1910) – até pouco antes de sua morte, 1970)
Assim, foi na onda dos novos gêneros de música do mundo rural da área em que a viola e o violão predominam como instrumentos de acompanhamento (tocados quase sempre em dueto), que iam aparecer no Brasil, a partir de inícios da década de 1940, inesperados modelos paraguaios de música “sertaneja”; os “rasqueados estilo paraguaio” (como Chinita mia, de Roberto Valdez e Raul Torres, gravado por Raul Torres e Florêncio), as “modas guarânias”, que casavam vagamente a moda-de-viola com o acompanhamento básico da guarânia (beicinho vermelho, de Raul Torres e Ziquinho Amaral Alves, também de 1942, gravado ainda por Torres e Florêncio em disco Odeon) e, finalmente as próprias guarânias, como seria o caso de Cuiabana porá-mi, de Rielinho, gravada em 1947na mesma Odeon pela dupla Serrinha e Caboclinho.
Estabelecida definitivamente a vaga de músicas de estilo paraguaio no meio da chamada música sertaneja brasileira (fenômeno para o qual ia contribuir, desde adécada de 1940, o extraordinário sucesso da guarânia de José Asunción Flores, Índia, nas suas gravações em espanhol pelo Conjunto Folclórico Guarani, em 1944, e em português pela dupla Cascatinha & Inhana, na versão de José Fortuna, em 1952), rasqueados e guarânias incorporaram-se definitivamente ao repertório da música popular brasileira. * E essa integração ia ser reforçada, aliás, quando em 1973 a cantora Gal Costa (que então ditava a palavra de ordem do gosto musical para grande parte da gente da classe média brasileira) lançou seu disco Índia, fazendo retornar ao sucesso a música de Flores, agora perante o público de universitários que a aplaudiria no show realizado naquele mesmo ano no Teatro da Universidade Católica de São Paulo.
O que ainda precisaria ser explicado, então, seria este pequeno fato que acaba por assumir o curioso aspecto de um desafiador fenômeno histórico-cultural: como se processou essa incrível expansão da guarânia, gênero de música urbana do Paraguai, além de sua fronteira, a ponto de transformar-se em gênero “nacionalizado” entre as músicas de origem rural do país vizinho, o Brasil?
A resposta, segundo o que a pesquisa histórica revela não se prende apenas à existência de uma continuidade sócio-cultural na área da fronteira Paraguai-Brasil, marcada pelas semelhanças de paisagem e de vida ás margens do Rio Paraguai no Mato Grosso do Sul, mas a um pouco detectado fenômeno de inter-relacionamento de origem econômica: a presença de tropeiros paulistas na vasta área que se estende desde a região cuiabana e as barracas do Rio Paraguai, até o sul de Campo Grande, na direção do Rio Paraná.
De fato, segundo as próprias letras de muitas modas-de-violas, rasqueados e guarânias dão a perceber, foram os boiadeiros e peões encarregados desde a década de 1920 de conduzir as boiadas de Mato Grosso para as invernadas paulistas que passaram a trazer de torna-viagem, adaptada ao som de suas violas, a notícia sonora daqueles gêneros musicais populares paraguaios logo assimilados, no Brasil, inclusive pela facilidade de entendimento da língua guarani, ainda hoje cultivada na intimidade por grande parte das camadas populares brasileiras da zona de fronteira com o Paraguai.
É isso, pelo menos, o que Raul Torres, um dos primeiros incorporadores de gêneros musicais paraguaios à música sertaneja brasileira, ia registrar em fins da década de 1930 na letra de sua moda-de-viola Boiada cuiabana:
“Vô contar a minha vida
Do tempo que eu era moço
Duma viage queu fiz
Lá pro sertão de Mato Grosso
Fui buscar uma boiada
Isso foi no mês de agosto”.
Segundo essa história cantada-contada Boiada cuiabana (que Raul Torres afirmava ter resultado de conversa com antigo boiadeiro casado com uma paraguaia), o paulista de Botucatu, após viajar trinta dias em sua “besta ruana” até Aquidauana, ia cnhecer em um cassino, na sua passagem de volta por Campo Grande, “a linda paraguaia” que lhe conquistaria o coração:
“De Campo Grande parti
Cuá boiada cuiabana
Meu amor veio na anca
Da minha besta ruana
Hoje tenho quem me alegre
Na minha veia choupana”.
É evidente, pois, que nos cassinos de cidades sujeitas à influência fronteiriça, os paulistas não iam conhecer apenas belas “chinitas” dispostas ao amor, mas também a música dos conjuntos paraguaios à base de violões e harpas índias, contratados para animar esses locais de diversões em que circulava à larga o dinheiro dos ingênuos agenciadores, boiadeiros e peões tangedores de gado. E a prova é que, em um rasqueado dos Irmãos Correa intitulado Praia de Corumbá, gravado pela dupla Nhô Pai e Nhô Fio em meados da década de 1940, essa síntese cultural brasileiro-paraguaia podia ser atestada até no emprego comum de certas expressões em guarani, e mesmo alguns costumes, como o d tomar tereré, o refresco de mate servido em bombilhas:
“Se você não vem
Eu vô te buscá
Na branca praia
De Corumbá
Eu quero um beijinho
Da tua boquinha
‘Eijhú mi chinita’
Me consola
Encosta a barca na barranca
Pra livrar dos jacaré
Você tece ‘inhanduti’
Enquanto eu tomo tereré”.
Estabelecida assim, pois, a ponte musical entre o Paraguai e o Brasil, através dessa importação espontânea de gêneros musicais do povo paraguaio, a partir de 1940, não seriam precisos mais de vinte anos para que, ao lado das violas caipiras, começasse a se tornar comum, nas gravações de guarânias brasileiras, o som das próprias harpas paraguaias. Esse novo capítulo no campo do inter-relacionamento cultural musical paraguaio-brasileiro se daria com o lançamento no Brasil, em 1958, de um excelente artista guarani, o harpista Luis Bordon.
Após integrar-se no meio da música popular brasileira como instrumentista, Luís Bordon começou a compor e a gravar músicas paraguaias e, diante do sucesso alcançado pelo som de seu instrumento – passaria a orientar inclusive fabricação de “harpas paraguaias” em São Paulo.
E foi assim que, graças ao gênio dos grandes compositores paraguaios, responsáveis por músicas hoje transformadas em clássico do repertório popular, e contando com o talento de especialistas em versões de guarânias para o português – como seriam os casos de José Fortuna, Palmeira e Ariowaldo Pires ( o famoso Capitão Furtado, falecido quando emprestava sua experiência à produção do presente disco) – a música paraguaia pôde identificar-se a tal ponto com a do seu irmão vizinho brasileiro, que até compositores de longínquos Estados do Nordeste, como Luís Vieira, e intelectuais e escritores, como o ex-Embaixador do Brasil no Paraguai, Mário Palmério, conseguem compor guarânias sem deixarem de sentir-se brasileiros.
E é exatamente por isso que, em matéria de guarânias, depois de meio século da maravilhosa criação de José Asunción Flores, pode-se dizer que paraguaios e brasileiros são, hoje uma, coisa só, como bem diz em Moreninha de Itaipu o letrista Ariowaldo Pires, fazendo cantar com seus versos sobre a linda música do Maestro Hermínio Gimenez.
“Numa saudade, cheia de encantos,
Eu volto, em sonho, a ser feliz
Revejo, unidos, no amor fraterno,
Os brasileiros e os “guaranis”.
* A presença da guarânia dentro da música sertaneja do Brasil chegou a ser tão marcante, pela década de 1950, que em 1958 os compositores brasileiros Nono Basílio (Alcides Felismino de Souza) e Mário Zan chegaram a anunciar a criação de um novo gênero musical intitulado tupiana (derivado do nome indígena tupi, assim como guarãnia vem do guarani), apresentando-o como uma alternativa brasileira, para resistir à “invasão” da guarânia paraguaia. A proposta na teve repercussão, e a guarânia continuou sua carreira triunfal.
GUARANIA – “PURAHEI IJAPYRA’YVA” (LA CANCIÓN SIN FRONTERAS – A CANÇÃO SEM FRONTEIRAS)